No esboço de uma canção de Chico Science, provavelmente interrompida pela morte prematura do autor, há uma sequência de versos que propõem o tempo como um fenômeno não-linear. Neles, o cantor e compositor brasileiro lança o olhar ao horizonte: “o futuro avança / em direção ao passado”, prevendo ainda que, “quando chegar a hora / [o encontro] / com o tempo real…”2, o mundo “será outro”. A tentativa de decifrar os significados de um objeto artístico inexistente, como os de uma música que nunca chegou aos ouvintes, é fascinante. Um pequeno exercício de especulação crítica insinua-se: que futuro é esse que avança, simplesmente para alcançar o passado? Qual é o tempo real de que o eu lírico fala? Quando será a hora deste encontro, e que mundo “outro” será este vindouro?
Parte destas inquietações encontram ecos em KaOuS (2025), de biarritzzz, um filme expandido em que a artista apresenta uma nova interpretação para a música kAPTURA oU sURTAH, que integra o seu álbum Eu Não Sou Afrofuturista (2020). Nele, biarritzzz procura desestabilizar o conceito ocidental de progresso, cuja crononormatividade linear enfatiza uma crença nos crescimentos econômico e material infinitos. Repetem-se incisivamente frases como: “não vou deixar que eles dominem o mundo”, “não serei mais um objeto de estudo” e, num transe sonoro crescente, “o real não é real”. Este “grito punk” da letra original é reavivado no filme através de contra-narrativas, nas quais ética, estética e política se entrelaçam como campos equivalentes numa disputa cosmológica de realidades. O tempo enquanto linearidade absoluta e a divisão fundadora entre cultura e natureza—dois mitos instaurados pelas tradições literárias e filosóficas do Ocidente e perpetuados pelas suas instituições—são colocados à prova.
Para isso, biarritzzz recorre às pedagogias do meme—termo que cunhou em alusão ao potencial das imagens virais, que circulam pelo espaço cibernético, enquanto ferramentas de comunicação, aprendizagem e síntese de informações—e ao modo operacional da web art, com as suas lógicas de apropriação e remix, para desenvolver uma linguagem satírica e bem-humorada capaz de descomplexificar temáticas caras ao pensamento contemporâneo. Nesse fazer artístico, que é pedagógico sem recorrer ao didatismo, as linguagens nascidas da popularização da World Wide Web alinham-se com as estéticas Do It Yourself e de produções de baixo orçamento, num subterfúgio que aproxima e acolhe diferentes públicos.
Em certa medida, biarritzzz opera através de abordagens herdadas de movimentos de contracultura, como o manguebeat de Chico Science & Nação Zumbi—do qual também recupera o insubmisso experimentalismo sonoro—, confluindo elementos a priori díspares numa linguagem comum. Misturar, recombinar, fundir e reativar são gestos caros ao seu trabalho, que se aliam às lógicas de funcionamento e às linguagens visuais da cultura da internet para alargar e aprofundar os debates que sua obra suscita. No tempo espiralar que a artista propõe, coexistem ruínas e projeções, ancestralidades e virtualidades, realidades e ficções. E “[o encontro] / com o tempo real”, que os versos do compositor insinuam, pode não ser mais do que o tempo presente, em expansão, corroendo a ideia de um progresso unidirecional.
KaOuS (2025) é uma comissão no âmbito do projeto ATLANTIC, uma iniciativa da Contemporânea.
—Paula Ferreira
Num mundo de sistemas de vigilância, vemos uma personagem que acorda sem saber onde está. Um quarto misterioso é habitado por objetos aparentemente inofensivos, mas que escondem em si câmaras de vigilância. Através delas, seguimos a personagem enquanto ela tenta escapar deste lugar. Com recurso às pistas espalhadas pelo quarto, a personagem tem exatamente 9 minutos e 59 segundos para decifrá-las e fugir.
Esta obra fala sobre dominação, captura, crise e ilusão. Recorrendo à sátira e ao humor, o filme envolve a estética de imagens de câmaras de vigilância e as pedagogias do meme na sua essência e concretização.
biarritzzz é a vencedora da Comissão Filme ATLANTIC
CONTEMPORÂNEA 2025
A comissão de Seleção composta por Inês Grosso, João Laia, Raphael Fonseca, Vitória Cribb escolheu a artista de Fortaleza, que vive e trabalha em Salvador, Brasil.
KaOuS é a obra que biarritzzz apresentará na galeria 2 da CULTURGEST, em Lisboa, entre 24 de outubro e 9 de Novembro.
Inauguração: 24.10
sexta: 22h
Horários Culturgest
Terça—Domingo
11h-18h
A comissão ATLANTIC é uma iniciativa da plataforma CONTEMPORÂNEA de apoio à criação artística, com foco na imagem em movimento. De âmbito internacional, esta comissão tem por objetivo escolher artistas visuais que explorem o filme, o vídeo e o cinema experimental nas suas práticas.
Comissão Atlantic 2025
Direção artística
Celina Brás
Coordenação Comissão Atlantic
Paula Ferreira
Comissão de Seleção
Inês Grosso, João Laia, Raphael Fonseca, Vitória Cribb
Local
Culturgest Lisboa
Gallery 2
Inauguração
24.10.2025
FRI 10:00pm
Datas
25.10 — 09.11.2025
Parceria
Culturgest
Apoio
DGArtes
biarritzzz (1994, Fortaleza, vive e trabalha em Salvador, Brasil) é artista transmídia antidisciplinar e investiga linguagens, códigos e mídias. Acredita na magia e na baixa resolução como contra narrativas importantes para viver a atual disputa cosmológica de realidades. Participou de exposições no MAM Rio, Museu do Amanhã, Kunsthall Trondheim, State Of Concept Athens, Delfina Foundation, plataforma Satélite (Pivô Arte e Pesquisa), A.I.R Gallery, Centro Cultural São Paulo, The Wrong Biennale, FILE, The Shed NY, entre outros. Integra os acervos do MASP, Rhizome Artbase (New Museum), KADIST Foundation, Museu Nacional da República e Instituto Moreira Salles. Foi indicada ao Prêmio Pipa em 2023 e novamente em 2024.