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Contemporânea

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    A Queda da Baleia

    na profundidade, o horizonte, aparentemente

    Existe sempre o mar sepultando pássaros
    renovando soluços
    rompendo gestos.

    (Hilda Hilst)

    Num espaço imprevisível, que provisoriamente experimenta outras ligações e se anuncia como lugar de partida, é onde a inquietação se liberta. Iluminar o que ainda não existe e ampliar o desconhecido. Materiais, dispositivos, sonoridades, confrontam energias que impulsionam campos flutuantes e se deslocam no espaço expositivo, convertido num intenso mundo oceânico. Este espaço não é confortável nem seguro, inerte ou trivial — existe em potência e aguarda o acontecimento. É inesgotável. Nele se manifesta a lei e a ordem, o desejo e a atracção. Uma espécie de anonimato aguarda obstinadamente a beleza do som das sereias para fazer surgir a passagem: volumetrias expandem-se em múltiplas alturas e possibilidades instáveis, circuitos abertos acolhem restos e vestígios do que outrora foi uma exposição — como quem aguarda escrever com as palavras dos outros e através delas descobrir formas ainda sem rosto ou o abismo de singulares encantamentos. Espaço de transição que se vai propagar e abrir, sem homogeneizar. Fragmentos sobre fragmentos. Não se trata de um acto simples e secundário. Clinamen. Durante o processo de desmontagem e montagem de exposições, assistimos à operação mais importante do tempo — o seu breve estado puro em desdobramento, a cada instante, em presente e passado, um e outro diferentes pela sua própria natureza, um que faz passar o presente e outro que conserva o passado.

    Tal como o cadáver de uma baleia em decomposição na profundidade do mar alimenta outros animais marinhos e impulsiona o desenvolvimento de um novo ecossistema, assim é o processo de construção da performance-instalação A Queda da Baleia — entre a desmontagem de uma exposição e o material menor aparentemente improdutivo que dela sobra, é a sua apropriação transfigurada em iconografias heterogéneas que organiza distintas sintaxes.  Uma espécie de programa intertextual é o que este ecossistema performativo configura. O abandono de qualquer ponto fixo, o caos de liberdade que habita os corpos e os reinscreve num lugar central de capacidade transformadora é, também, o da sua fragilidade. Sem qualquer exotismo nostálgico ou a idealização dos modos de coexistência, os organismos que aqui são convocados encontram-se e afectam-se, atacam e defendem-se. Os lugares de violência e as relações de poder nunca tiveram horizontes estáveis. Não garantindo um qualquer nome próprio, são a imponderabilidade, o acaso e o caos, presentes nestes territórios semânticos, que nos restituem Lucrécio e a pluralidade da sua filosofia que é, ainda, a do universo — todos integram o cosmos em movimento contínuo, sejam os oceanos, as pedras ou os seres humanos:

    Em primeiro lugar, porque a massa da terra e a água,
    os leves sopros do ar e os vapores do fogo,
    de que se percebe que este Universo é formado,
    tudo isto é constituído por matéria que nasce e morre,
    é de pensar que a natureza do mundo inteiro assim é também.1

    Actualmente, é o naufrágio das nossas acções que parece traduzir a destruição e a violência objectiva sobre o planeta. É a ameaça do colectivo que desfila perante os olhos da sociedade contemporânea: “desde o começo da nossa cultura, a Ilíada opõe-se à Odisseia como o comportamento em terra aos hábitos do mar: o primeiro tem apenas em conta os homens, os segundos prendem-se com o mundo.”2 Cobrindo setenta por cento da superfície da terra, a água constitui o ambiente que domina o planeta e, como argumenta David Wallace-Wells, não é o oceano que é o outro, somos nós. Modulando as alterações climáticas e armazenando mais carbono que a terra e a atmosfera juntas, os oceanos têm vindo a alimentar-nos. Porém, também a sua acidificação provoca danos nas populações de peixes, transformando os habitats da vida marinha e interferindo nos seus ciclos biogeoquímicos. De igual forma, a anoxificação, sustenta ainda o autor, tem aumentado as centenas de zonas mortas, privadas de oxigénio. Face às catástrofes que ultrapassam a exclusiva origem natural, são os códigos da vida — naturais e culturais, tão antigos quanto próximos, sem fronteiras entre os mares e as montanhas — que nos aproximam e fundam o nosso lugar comum, uma certa hospitalidade.

    O mundo da economia política, no qual nos constituímos, que depende de nós e do qual dependemos, exige um tempo sem senhor e sem escravo, uma redobrada crítica da ordem estabelecida, do adestramento. Talvez a arte ainda possa ser capaz de nos levar a esses lugares extremos, de afligir, como reivindicou Nietzsche para a filosofia ou, nas palavras de Deleuze, atacar o disparate. Não se trata da possibilidade do saber ou dos modos de representação do ser mas, antes, de procurar um espaço não totalitário — um devir-outro, a nova aliança que, à maneira deleuziana, transforma em horizonte o deserto e o céu, o mar e o oceano, o ilimitado.

    Afastando o espectro da morte e perante a existência das formas nas quais as vidas mutuamente se contaminam e superam, Ece Canli e Hugo Canoilas oferecem um oceano luminoso, sons subterrâneos, correntes marítimas, estranhos cromatismos e texturas de sentidos. Fantasmagorias reinscrevem possibilidades utópicas. Transubstanciação. A anarquia é aparente e o rigor é artaudiano. Inesperadas bifurcações, múltiplos regimes de enunciação são invadidos por disseminações sonoras que se espacializam como subjectividades errantes — um devir ilimitado das espécies:

    Nem vocês nem eu, com os nossos sentidos orientados para a terra, sabemos como é a espuma e a subida da maré que faz oscilar o caranguejo que se esconde sob as algas da sua casa numa poça natural; nem a cadência das ondulações longas e lentas a meio do oceano, onde cardumes de peixes errantes predam e são predados, e o golfinho quebra as ondas para respirar a atmosfera acima delas.3

    Sem autocomplacência, A queda da baleia testemunha não só essa acção de autopoiesis de todos os seres vivos, como exprime o agenciamento colectivo e a mutação da obra que impele os artistas no seu movimento próprio. Neste processo que suscita a interacção da obra com o espaço físico e a efemeridade temporal do contexto, os artistas aproximam-nos de um laboratório site-specific activo, partilhado e vivo, no qual a ficção se estrutura para assim poder afirmar-se como elemento constitutivo. Subtraindo esta proposta a um modelo padronizado de apresentação, é a complexidade das zonas indiscerníveis, a intersecção entre meios convocados e a força de penetrar em distintos estratos, que manifestam a sua potencialidade instrumental, crítica e artística. Não existem lugares privilegiados nesta rede de relações formais e conceptuais. Objectos, espécies imaginadas e a imaginar operam situações de vizinhança com o absoluto do oceano — sem fronteiras nem sujeição, à maneira dos poetas:

    Considerar o oceano simplesmente, como fazem os poetas, segundo o que a vista mostra, por assim dizer se ele é contemplado em repouso, como um claro espelho de água que é limitado apenas pelo céu, mas, no caso de estar agitado, como um abismo que ameaça tragar tudo e, no entanto, sublime. 4

    Uma conceptualização voluptuosa de ilhas fluídas, requer transmutações subjectivas, qualidades somáticas dos corpos, superfícies que estabelecem confrontos. Desterritorializada e reterritorializada através de intensidades visuais, sonoras, plásticas e espaciais, é a relação entre obra e público que emerge através da vivência mútua e de um contrato natural de simbiose, na acepção de Michel Serres. De igual forma, neste projecto, e para falar como aquele autor, é da mudança global que se trata e não da tradicional relação entre parasita e hospedeiro. É a soberania da reciprocidade que se cumpre. O oceano como acontecimento colectivo e poética da alteridade.

    À semelhança de L´homme atlantique, deambulamos entre falhas e derivas, sem guião ou narrativa para contar. Não obstante, nesta performance-instalação o negro ainda se abre à cor, ao gesto, às imagens e à voz. Há amor e há escuta. Há ainda o mar, que é deserto, a perder de vista:

    Digo o mar, sim, esta palavra, à sua frente, estas paredes em frente ao mar, estes desaparecimentos sucessivos, este cão, este litoral, este pássaro sob o vento atlântico.5

    Direção Artística
    Celina Brás

    Performance
    Ece Canli e Hugo Canoilas

    Texto
    Eduarda Neves

    Produção Executiva
    Helena Mendoça

    Data
    03.05.2025 às 17h00

    Local
    CIAJG

    Organização
    Contemporânea em parceria com o CIAJG

    Entrada
    Livre

    Fotos
    Mafalda Mendes

    Eduarda Neves é professora, ensaísta e curadora independente. A sua actividade de investigação e de curadoria articula os domínios da arte, filosofia e política.

    A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

    Hugo Canoilas e Ece Canli, A Queda da Baleia. Imagens da performance no CIAJG, Guimarães, 2025. Fotos: Mafalda Mendes. Cortesia dos artistas e CIAJG.

    Notas de Rodapé
    1. Lucrécio — Da Natureza das Coisas. Lisboa: Relógio d´Água, 2015, p. 279.
    2. Michel Serres — O Contrato Natural. Lisboa: Ed. Piaget, p. 69. E mais à frente, escreve: “A partir de agora, o governante deve sair das ciências humanas, das ruas e dos muros da cidade, tornar-se físico, emergir do contrato social, inventar um novo contrato natural, devolvendo à palavra natureza o sentido original das condições em que nascemos - ou deveremos renascer amanhã. Inversamente o físico, no sentido grego mais antigo e também mais moderno, aproxima-se do político.” [p. 73].
    3. Rachel Carlson — “Undersea”, Atlantic Monthly, vol. 160, Set. 1937, pp. 322-25, in David Wallace-Wells — A Terra Inabitável. Como vai ser a Vida pós-Aquecimento Global. Lisboa: Editora lua de papel, 2019, p. 129.
    4. Immanuel Kant — Crítica da Faculdade do Juízo. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, Clássicos de Filosofia, 1998, p. 169.
    5. Marguerite Duras — L´homme atlantique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1982, pp. 8-9.