Que escuro vai dentro de nós, Que adianta saber as marés
A minha primeira grande viagem foi o movimento migratório dos meus pais, atravessando o oceano: um gesto de amor e resistência. À falta de regresso ao continente-mãe, a televisão serviu nos anos 90 e 2000 o propósito da educação e da imaginação. Tudo o que aprendi sobre hidrofeminismo aprendi na MTV e na VH1, sob outros nomes, outras teóricas, outras imagens: TLC, Waterfalls. Aaliyah, Rock the Boat. Janet Jackson, Everytime. Mulheres negras em piscinas, mergulhando, flutuando, amando os seus próprios corpos; mulheres negras numa ilha, num barco, dançando; mulheres cujos corpos negros se tornavam transparentes, se desfaziam e refaziam em esculturas musicais, dando conselhos para a vida, apelando a uma maior cidadania, combatendo epidemias. Numa entrevista, ainda nas Destiny’s Child, Beyoncé disse certa vez que sonhava ser uma baleia, que sempre as adorou desde criança, que gostaria de conseguir tocá-las, um dia. A água é a primeira música que ouvimos, é a derradeira tradutora e condutora do que nos vai dentro. Hoje, Ariel já não é mitologia, nem está no fundo do mar, ela respira à superfície e usa rastas fortes como cordas com que se agarra à vida.
Astrida Neimanis e Alexis Pauline Gumbs ajudaram-me a pensar e a encontrar novas formas de nomear e desbloquear o prazer, a consciência social, o descanso, a ancestralidade, o canto e a contação de histórias, da história, o luto colectivo, o poder de uma respiração, a magia num punhado de ervas. As peças sonoras apresentadas são uma ínfima parte de diálogos aquáticos internos e externos, ao longo de vários meses e geografias. Como disse a artista, curadora e poeta brasileira Aline Motta, a água é uma máquina do tempo. Uma vez, em São Pedro do Sul, gravei o som de uma fonte pública a 68 °C. Uma mulher aproximou a mão e queimou-se. Mais tarde, uma amiga contou-me que também lhe acontecera o mesmo, e mostrou-me a fotografia tirada pelo companheiro: a dor e a surpresa eternizadas, a água em espelho, a memória de como as mulheres se aproximam, atraídas e protegidas, daquilo que queima. Desde a gestação, a água carrega as nossas vozes, mágoas, memórias, os nossos segredos e curas, devolve-nos perguntas e pertenças, acompanha-nos até ao fim.
De onde eu venho, as mulheres usam uma cabaça com água para fazer música. As palmas e as batidas são o que ecoa na tina, normalmente tocada a quatro mãos. Instrumento de celebração da vida e da morte, tanto quanto um marcador das conversas, das alegrias e das agruras do quotidiano, sobretudo entre mulheres, mas aberto a toda a comunidade. De onde eu venho, existem baleias e golfinhos ainda por preservar, mais do que por avistar e tocar. De onde eu venho, as mulheres sustentam a economia através da agricultura, seja nos arrozais ou nos campos. De onde eu venho, às vezes parece-se com para onde eu vim.
Mesmo um corpo de água desaparecido pode abrir caminho, pode ser o caminho. Um leito seco pode ser um mapa para quem o souber ler. Guarda-Rios é uma homenagem e um diálogo com poemas em torno da água, da artista Teresa Ves Liberta, publicados no jornal Coreia após um seu voo migratório mais prolongado. Penso tê-la visto por momentos, na aldeia - essa outra forma de ilha - em trilhos e no coro feminino multigeracional; nas mãos enrugadas que faziam o pão e a manteiga para sustentar a família, nos riachos, nos seixos e nos peixes, nas lágrimas e no orvalho, nas poças e no arco-íris que fica nas estradas; no muro grafitado que exige smash patriarchy!; nos fiordes noruegueses de água espessa e escura, coberta pelo gelo como um puzzle; num verso da poeta espanhola Miriam Reyes: entrou-me água na memória e está a levar tudo.
© Gisela Casimiro
Título retirado de A Gente não lê, de Rui Veloso, que ouvi cantar ao grupo coral feminino Vozes de Manhouce
Texto e interpretação
Gisela Casimiro
Montagem sonora
Odete
Apoio à residência
vaga - espaço de arte e conhecimento / Anda&Fala - Associação Cultural
Gisela Casimiro (Bissau, 1984) é artista transdisciplinar, escritora, tradutora, oradora e activista. A sua prática centra-se em temas como o corpo, a memória, o trauma, a cura, o quotidiano, a resistência, o luto colectivo e o antirracismo. Publicou os livros Erosão, Giz e Estendais. Assinou as peças Casa com Árvores Dentro e Vida: Uma Aplicação (PANOS/TNDMII). Apoiou a dramaturgia de Blackface, de Marco Mendonça, e a criação de Belonging, de Raquel André. Traduziu Irmã Marginal e Os Diários do Cancro, de Audre Lorde, e Miss Major Fala: Conversas com uma Revolucionária Trans Negra, de Toshio Meronek e Miss Major Griffin-Gracy. Expôs obras no Armário, Balcony, ZDB, Galerias Municipais do Porto, Lisboa e Almada, MACE, Appleton e Museu Afro-Brasil Emanoel Araújo. Integra a colecção António Cachola. Foi residente YBYTU (São Paulo) e T-Yard (Bergen). Cofundou a UNA - União Negra das Artes.