A programação de vídeos Arquivo Pelágico explora o arquivo vivo que é o mundo atlântico — um vasto repositório de histórias, imaginários e narrativas que o reconfiguram continuamente. As obras de imagem em movimento selecionadas recorrem à memória coletiva e à investigação artística para traçar conexões fluidas entre histórias de colonização, deslocação e destruição ecológica. A vastidão do Atlântico reverbera na tensa relação entre trabalho e ambiente, entre as histórias de exploração e sobrevivência arquivadas em corpos, mentes, paisagens, narrativas, movimentos e disrupções.
Como argumenta o artista cabo-verdiano César Schofield Cardoso, o oceano é “desde os tempos coloniais até aos dias de hoje, um lugar ocupado, explorado e tóxico”. Perante a ordem neoliberal global, com a sua extração gananciosa, poluição e tráfico, como podemos reimaginar este vasto oceano como espaço de sonhos e subsistências? O Atlântico é simultaneamente ferida e horizonte. Guarda a memória da escravatura, das rotas mapeadas pela violência, enquanto oferece imaginários de renovação. Como argumenta Paul Gilroy em The Black Atlantic (1993), este oceano é espaço da própria modernidade — um campo irredutível onde as histórias da Europa, da África e das Américas se entrelaçaram num sistema de circulação, tradução e rutura.
Pensar o Atlântico como arquivo é enfrentar a colonialidade dos mares, onde oceanos e ilhas foram definidos como margens do império, palcos para as economias de plantação e laboratórios para o capitalismo extrativo. Este arquivo não é estático, mas continua vivo, sobreposto com estratos de contranarrativas que ressurgem através da arte, do ritual e de práticas corporizadas. Arquivo Pelágico desdobra-se neste campo de tensão. Os cinco filmes reunidos criam uma constelação de perspetivas que abrangem Port-au-Prince, Ouidah, a Amazónia, Cabo Verde e Ceuta. As suas geografias podem ser díspares, porém cada uma delas reforça que o oceano não é um vazio conector de terras, mas uma superfície e uma profundidade mutáveis onde histórias se intersetam. Como as marés, as obras ressoam umas com as outras, oferecendo-nos variações sobre questões partilhadas: Como é a memória transportada em corpos e gestos? Como é que a extração esvazia paisagens e sociedades? Como podemos reimaginar o mar, não como fronteira de despossessão, mas como espaço de possibilidade?
My dreams / Mes Rêves (2021), de Maksaens Denis, situa-nos no Haiti, onde as réplicas da revolução e os seus castigos continuam a reverberar. O corpo masculino negro, coreografado em momentos de vulnerabilidade e desafio, atravessa uma paisagem onírica pontuada por imagens de protesto e violência em Port-au-Prince. O filme examina o corpo como arquivo — inscrito pelos legados da escravatura e da repressão estatal, resiste à rasura, tornando-se local de imaginação. Oscilando entre o íntimo e o coletivo, a obra de Denis recorda-nos que o mundo atlântico é carregado não apenas por diários de bordo ou registos comerciais, mas na carne, no sono, em gestos de sobrevivência e resistência.
Deste registo corporal, mudamos para Ouidah, no Benim, um dos epicentros do tráfico transatlântico de escravos. Em Tradição e imaginação (2019), Vanessa Fernandes trabalha com sacerdotes e dançarinos Vodun na reativação da memória através do movimento. Ao longo da "Rota dos Escravos” que conduzia os cativos até à costa, a câmara demora-se em edifícios portugueses abandonados e monumentos pesados, mas é na dança que a história ressurge com vitalidade. O mar, receado pelo seu papel no transporte de milhões de corpos para a escravidão, torna-se limiar para a coreografia que honra a perda e a continuidade. Fernandes desafia também a demonização do Vodun, recorrentemente retratado como sinistro nos imaginários coloniais e de Hollywood. Em vez disso, a artista enquadra-o como um sistema de resiliência espiritual, uma cosmologia que atravessou o Atlântico e configurou várias culturas diaspóricas. O seu filme expande o sentido do corpo enquanto recipiente de memória, na direção de uma prática ritual coletiva que se estende entre continentes.
Retratadas por Janaina Wagner em Cães Marinheiros (2020), as ruínas de Velho Airão, na Amazónia brasileira, alteram o foco na escravatura para abordar as lógicas extrativistas que sustentaram as economias coloniais. Outrora centro da exploração de borracha, a aldeia colapsou quando a extração se provou insustentável, deixando para trás lendas que contam dos seus habitantes serem “devorados por formigas”. Wagner tece estas paisagens com o conto homónimo do poeta português Herberto Hélder, para criar uma inversão perspetivista onde palavras e imagens se desmontam dentro de uma floresta esvaziada de vida humana. Apesar de geograficamente distante da costa do Atlântico, é nele que desaguam os rios da Amazónia, unindo históricas locais de exploração a circuitos globais de demanda. Pelas lentes de Wagner, a Amazónia torna-se outro lugar do Atlântico: um território esvaziado, rebatido num círculo maior de auge e falência colonial, O filme sublinha como a violência do Atlântico nunca esteve confinada às suas linhas costeiras; propagando-se pelos territórios adentro, moldando ecologias e aldeias, e deixando para trás ruínas e mitos.
Se Wagner reflete sobre o que se perdeu no rescaldo da extração, César Schofield Cardoso volta-se para o que foi negado: a possibilidade do oceano em si mesmo. No seu projecto Blue Womb [Ventre Azul], o vídeo There Are Many Fishing Vessels [Há Muitos Navios de Pesca] (2019) investiga a relação paradoxal de Cabo Verde com o mar. Apesar de deterem um território marítimo catorze vezes maior do que a sua massa terrestre, as ilhas sofreram fomes catastróficas sob regimes coloniais que não conseguiram integrar o oceano nos sistemas de sustento. O mar estava presente como horizonte, mas ausente como recurso, enquanto políticas de negligência condenavam as populações à fome. Cardoso reimagina o Atlântico como ventre, espaço de potenciais futuros em vez de traumas por curar, reenquadrando o oceano não como ausência, mas como terreno central para a ecologia política.
Por fim, Bab Sebta (2019), de Randa Maroufi, situa-nos no limiar da Europa, no enclave espanhol de Ceuta, em solo marroquino. Aqui, o arquivo Atlântico aparece não em ruínas ou memória, mas na coreografia diária do contrabando, onde milhares de pessoas transportam fardos de mercadorias através de linhas fronteiriças pintadas. Filmada de cima, a obra transforma o trabalho em ritual, a repetição em perseverança. O lento enquadramento de Maroufi revela a fronteira como palco onde a logística global se desenrola sobre as costas humanas.
No seu conjunto, estas obras tecem uma tapeçaria atlântica que resiste à clausura. O que emerge é o que podemos chamar de um arquivo pelágico — não fixo em monumentos ou documentos, mas fluido, móvel e corporificado. Denis e Fernandes centram o corpo como recipiente de memória; Wagner expõe as ruínas do extrativismo e da exploração; Cardoso reivindica o mar, reimaginando-o como ventre de futuros; Maroufi volta-se para a economia fronteiriça atual, mostrando como as circulações atlânticas persistem sob novas roupagens de legalidade e vigilância. Ao contrário de um arquivo terrestre que preserva, cataloga e fixa, o arquivo pelágico vagueia, ressurge, recombina-se. Mantém-se vivo em danças coreografadas, em ruínas tomadas pela floresta, no silêncio da fome, no zumbido das ondas sísmicas e nas filas de pessoas a cruzar fronteiras.
Arquivo Pelágico chama a atenção para a logística dos sistemas humanos e não-humanos num mundo interligado e atemporal, navegando pela vastidão espacial do Atlântico. Propõe que habitemos as suas correntes, que escutemos as suas ressonâncias, que atendamos às suas vozes submersas. No final, o Atlântico é uma maré — que recua, regressa, reformula — carregada de ecos do futuro e da persistência de possibilidades passadas. Através desta seleção de obras de imagem em movimento, somos convidados a vaguear com ele, a abraçar os seus traumas e a potencializar os seus sonhos.
—Ana Salazar Herrera, curadora Arquivo Pelágico
Programação
5 a 14 de setembro — Maksaens Denis, My dreams (2021)
16 a 25 de setembro — Vanessa Fernandes, Tradição e Imaginação (2019)
26 de setembro a 5 de outubro — Janaina Wagner, Cães Marinheiros (2020)
8 a 17 de outubro — César Schofield Cardoso, There Are Many Fishing Vessels (Blue Womb) (2023)
21 a 30 de outubro — Randa Maroufi, Bab Sebta (Ceuta’s Gate) (2019)
Imagem
César Schofield Cardoso, There Are Many Fishing Vessels (Blue Womb), 2023, Still
Tradução EN-PT
Marta Espiridião
Ana Salazar Herrera (1990) é uma curadora equatoriana e portuguesa que explora subjectividades nómadas, polilinguísticas e transculturais. É fundadora da plataforma Museum for the Displaced (desde 2019, mfdisplaced.org) e do projecto de investigação Transequatorials (2025). Atualmente investigadora curatorial na Diriyah Contemporary Art Biennale (DCAB) 2026, Riyadh, foi co-curadora da DCAB 2024; curadora interina no Ludwig Forum Aachen (2022-23); e curadora assistente no NTU Centre for Contemporary Art Singapore (2016-20). Foi membro do comité de pré-seleção para a 22ª Bienal Sesc_Videobrasil, São Paulo (2023); Curadora-em-Residência na Künstlerhaus Schloss Balmoral, Alemanha (2021-22); mentee do Project Anywhere (2020-21); e Shanghai Curators Lab Fellow (2018). Tem um mestrado em Práticas Curatoriais pela School of Visual Arts, Nova Iorque, e uma licenciatura em Piano pela Escola Superior de Música de Lisboa. A sua escrita foi publicada em revistas de arte, catálogos de exposições e jornais académicos.